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A necessidade de tratamento dos bens digitais no planejamento sucessório
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a necessidade de tratamento dos bens digitais do autor da herança no momento da realização de seu planejamento sucessório, especialmente, considerando-se o atual contexto social em que está inserido, incluindo os bens digitais patrimoniais, os existenciais, e os híbridos, privilegiando a autonomia da vontade e a privacidade do proprietário de tais bens.
ABSTRACT
The present work aims to analyze the need for processing the digital assets of the author of the inheritance, at the time when to carry out his succession planning, especially considering the current social context in which it is inserted, including digital assets patrimonial, existential, and hybrids, privileging the autonomy of the will and the privacy of owner of such assets.
PALAVRAS-CHAVES: bens digitais, planejamento sucessório, autonomia da vontade, privacidade
KEYWORDS: digital assets, sucession planning, autonomy of the will, privacy.
1 - INTRODUÇÃO
Ao observar o contexto social atual é possível perceber que não apenas as relações firmadas entre os indivíduos, como os próprios bens juridicamente tuteláveis pelo Direito sofrem constantes atualizações a todo tempo, especialmente, considerando os avanços tecnológicos decorrentes da globalização e a era digital. Nesse sentido, é importante analisar a relevância dos bens digitais no planejamento sucessório do autor da herança.
O planejamento sucessório é um instrumento jurídico que possibilita ao autor da herança organizar e planejar ainda em vida a destinação que deseja dar ao seu patrimônio após a sua morte, com o objetivo de reduzir eventual conflito entre os herdeiros futuramente, evitar a realização de inventário, minimizar os custos tributários, entre outros benefícios. Tal instrumento é comumente utilizado para organizar a destinação dos bens físicos do autor da herança. Contudo, deve-se também pensar em realizar o planejamento sucessório levando-se em conta a destinação dos bens digitais do proprietário. Ou seja, verificar qual é a destinação que o autor da herança quer dar à tais bens.
Os bens digitais podem ser classificados em bens patrimoniais, existenciais e híbridos. Dentre os primeiros pode-se citar as criptomoedas (bitcoins), milhas aéreas, músicas, bibliotecas digitais e quaisquer outros bens que tenha caráter econômico. Já dentre os bens digitais existenciais, tem-se como exemplos os perfis de redes sociais, as mensagens de aplicativo, tais como o Whatsapp, as contas de e-mails e quaisquer outros bens que tenham natureza personalíssima. Os híbridos, por sua vez, são aqueles que possuem caraterísticas tanto de caráter econômico, como de natureza personalíssima, como as contas dos canais Youtube e Instagram.
Apesar do atual contexto social, as legislações vigentes não abordam o tratamento dos bens digitais do autor da herança. O Código Civil, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados não regulamentam a disposição da chamada herança virtual. Por esse motivo, é relevante a realização de estudos e pesquisas que objetivem atualizar a legislação no que diz respeito à destinação dos bens digitais pelo titular do patrimônio, privilegiando a autonomia da vontade e resguardando o seu direito fundamental de privacidade, constitucionalmente garantido.
A metodologia que se utiliza é a jurídico sociológica, já que se busca compreender de forma mais ampla a necessidade de tratamento dos bens digitais no planejamento sucessório, ainda que ausente de regulamentação legal específica. O método de investigação adotado é o jurídico-compreensivo ou jurídico interpretativo, por meio do qual, partindo das premissas já existentes que regulamentam o planejamento sucessório dos bens do titular da herança em meio físico, surge a compreensão da necessidade de regulamentação da “herança digital”.
2 - HERANÇA DIGITAL
Não há dúvidas de que as pessoas estão cada vez mais conectadas no mundo digital e que parte dos bens que eram arquivados em meio físico, hoje são armazenados no meio digital. Diante desse fato, surge a necessidade de se compreender o significado da chamada “herança digital”. É preciso pensar qual será a destinação dos bens digitais do proprietário após a sua morte.
O art. 1.784 da Lei 10.406/02 - Código Civil (BRASIL, 2002) afirma que a herança é transmitida aos herdeiros legítimos e testamentários, assim que for aberta a sucessão. Não existe, contudo, na legislação brasileira, seja no Código Civil ou em outros diplomas legais, um dispositivo expresso que afirme que os bens digitais devem ser transmitidos aos herdeiros do falecido. Diante desse fato, aparece a discussão se os bens digitais devem ou não seguir as mesmas regras sucessórias do que os bens físicos deixados pelo autor da herança.
Para isso, é necessário, antes de qualquer coisa, entender qual é a natureza jurídica dos bens digitais e ponderar o direito dos sucessores frente a necessidade de proteção da privacidade e da intimidade do proprietário dos bens. (MARTINS, 2019, p. 465; FALEIROS JÚNIOR, 2019, p. 465).
Nas palavras de Guilherme Magalhães Martins e José Luiz de Moura Faleiros Júnior:
A chamada “herança digital” deve ser estudada, no cotejo da diferenciação desses elementos distintivos, para que viabilize a adequada operacionalização da legítima (e, em certa medida, da sucessão testamentária) com pleno rigor na conjugação de interesses dos herdeiros, quanto à memória e ao acesso ao espólio digital do de cujus, e, deste, quanto à preservação de direitos fundamentais seus. (2019, p. 465).
Algumas plataformas disponíveis na internet já questionam o usuário qual será destinação de seus bens digitais após o seu falecimento. É o caso do Google, que fornece aos usuários um mecanismo para gerenciar os dados do proprietário da conta após a sua morte ou incapacidade e do Facebook, que autoriza que o titular da conta escolha um herdeiro para gerir a conta do proprietário após a sua morte ou que o usuário determine que sua conta será excluída em caso de falecimento. Entretanto, o Facebook não autoriza que o herdeiro escolhido pelo titular da conta faça o download irrestrito dos dados do proprietário falecido, mas tão somente, que tenha a administração da conta do falecido que será alterada para um memorial. (ALMEIDA, 2017, p.59).
“A interação entre o Direito Sucessório e o patrimônio digital do falecido ainda é tímida, contudo, as soluções jurídicas começam a desenhar, na medida em que a tecnologia proporciona uma evolução constante na sociedade, atribuindo a estes uma importância cada vez maior.” (OLIVEIRA, 2021, p. 77; BULZICO, 2021, p.77).
O tratamento jurídico moderno do conteúdo deixado pelo proprietário dos bens digitais após o seu falecimento tem sido desenvolvido sob o enfoque patrimonial. Porém, é inegável que, além dos bens digitais patrimoniais, existem os bens digitais existenciais, cujo tratamento do conteúdo disponível na rede após o falecimento do usuário não deve ser restrito à ótica patrimonial. (LEAL, 2018, p. 181-197).
Nesse sentido, apesar de não existirem dúvidas de que os bens digitais também são tutelados pelo nosso ordenamento jurídico, especialmente, pelo Código Civil, embora tais normas sejam genéricas, é de suma importância conceder ao titular do patrimônio a autodeterminação patrimonial para que ele decida qual o destino que deseja dar aos bens digitais de sua titularidade e propriedade após a sua morte, sobretudo, aos bens digitais existenciais. (MARTINS, 2019, p. 478; FALEIROS JÚNIOR, 2019, p. 478).
3 – CONCLUSÃO
Diante das inúmeras inovações tecnológicas, a Sociedade vivida hoje é conhecida como a Sociedade da Informação e os fenômenos jurídicos que ocorrem desde os primórdios até a atualidade devem adequar-se ao atual contexto social vivido. Dentre esses fenômenos jurídicos, a sucessão é um deles e o planejamento sucessório dos bens digitais tornou-se uma necessidade diante do cenário atual.
Os bens digitais, tais como filmes, ebooks, músicas, criptomoedas, licenças de software e outros são cada vez mais adquiridos pelas pessoas e diante da ausência de legislação específica que trate sobre a herança desses bens, é necessário refletir sobre qual o tratamento que será dado para esses ativos quando o proprietário de tais bens vier a falecer. “A herança digital deve ser estudada para que se viabilize a adequada operacionalização da legítima” (MARTINS, 2019, p. 478; FALEIROS JÚNIOR, 2019, p. 465).
Existem no Brasil dois Projetos de Lei com a intenção de regulamentar a sucessão dos bens digitais, que são o Projeto de Lei número 4.099 de 2012, cujo objetivo é acrescentar o parágrafo único ao artigo 1.788 da Lei. 10.406/02 (Código Civil) para tratar da transmissão das contas e arquivos digitais do autora da herança para os seus sucessores e o Projeto de Lei número 4.847 de 2012, que tem como objetivo acrescentar o Capítulo II-A (Da Herança Digital) e os artigos 1.797-A e 1.797-C na Lei. 10.406/02 (Código Civil) com a finalidade de tratar da sucessão do conteúdo intangível do falecido. Porém, ambos os projetos foram arquivados. (BRASIL, 2012)
Entretanto, em razão das da atual complexidade social e das relações sociais e econômicas firmadas, não há dúvidas de que esse assunto deverá ser retomado pelos legisladores, para evitar problemas como o tratamento inadequado dos bens digitais do autor da herança pelos seus sucessores, agindo contra a sua vontade. Nesse sentido, é imprescindível que o planejamento sucessório também contemple os bens digitais do autor da herança, privilegiando assim a autonomia da vontade, o direito à privacidade e à intimidade.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, J. A Tutela Jurídica dos Bens Digitais Após a Morte: Análise da possibilidade de reconhecimento da herança digital. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. 171 p. 2017.
BUFULIN, Augusto Passamani; DAL’COL, Caio de Sá. A Realização do Planejamento Sucessório como Forma de Concretização da Autonomia da Vontade do Titular do Patrimônio: uma Necessária Releitura do Direito das Sucessões a Partir do Direito Constitucional de Herança e o Atual Contexto Social. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões. Porto Alegre: LexMagister, jul/ago, 2020), v.37, Coordenadores: Mário Luiz Delgado e Fernanda Tartuce.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.099, de 20 de junho de 2012. Altera o art. 1.788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que "institui o Código Civil". Brasília: Câmara dos Deputados, 2012. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1004679>. Acesso em: 16 mai. 2021.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.847, de 12 de dezembro de 2012. Acrescenta o Capítulo II-A e os arts. 1.797-A a 1.797-C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1049733&filename=PL+4847/2012>. Acesso em: 16 mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 15 mai. 2021.
LARA, Moisés Fagundes. Herança Digital. Porto Alegre, RS: S.C.P., 2016. Disponível em <https://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=bQxyDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA12&dq=bens+digitais+no+planejamento+sucessorio&ots=pa2ZMGmzv8&sig=p6Tb_AUy24E_eWDwZ_zZLjNg7w#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 17 mai. 2021.
LEAL, Lívia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBD Civil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018).
MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. O Planejamento Sucessório da Herança Digital. In: TEIXEIRA, Daniela Chaves (Coord.). Arquitetura do Planejamento Sucessório. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 465-484. Tomo I.
OLIVEIRA, Thiago Barcik Lucas de; BULZICO, Bianca Amorim. Herança Digital: O Direito Sucessório como Norte Legislativo à Transmissão Mortis Causa de Dados Remanescentes. Conhecimento, Experiência e Empatia: A Envoltura do Direito. Adayson Wagner Sousa de Vasconcelos (Organizador). Atena Editora. 2021, p. 77.
Fonte: Priscila Andrade Reis Villela>
Data: 13/12/2024>